Fronteira















- Os cachorros mordem!? Perguntei, tentando ser simpática, quando chegamos a estância do seu Vivi.

- Bah! Tem boca e dente... – respondeu Mário, capataz da fazenda, um gaúcho da Fronteira que sentado sob a sombra de uma parreira carregada, tranqüilamente tomava seu chimarrão.

Depois de quase 60 km de uma estrada de terra; depois de atravessar com o carro por dentro de um riacho quase cheio. Depois de sentir meu senso de História virar do avesso ao identificar as planícies desertificadas, naqueles pampas tão exuberantes; ao avistar enormes muros de pedra centenários, quem sabe da época da escravatura e que se estendem ao longo da estrada, dividindo propriedades e por vezes o Brasil do Uruguai. Depois de passar pela região da Guerra das Farroupilhas... De nos divertirmos com as avestruzes e suas famílias, que fugiam diante da lente da minha câmara digital; das ovelhas convivendo no mesmo pasto com o gado, as corujas “fora de hora”, bandos de patos selvagens e cavalos.

Descemos do carro, arriscando nossos fundilhos e pernas: Leal, João, Mauro e eu.

Em poucos minutos de conversa, três guris haviam se juntado a nós e um deles o mais falante e inquieto, já nos apresentara às figueiras, laranjeiras, pessegueiros e muito mais parreiras. De relance conseguimos ver os lagartos que habitam em baixo da piscina. Lógico que este guri quis apresentar-me a sua mãe: dona Nara, que numa pequena cozinha (pequena para as proporções da enorme casa da fazenda) enchia o ar de um aroma maravilhoso, saído das panelas e travessas que borbulhavam sobre o fogão à lenha.

Nelson veio se juntar a nós. Ele é responsável pela extração dos geodos de ágata.

Nossa conversa nos valia mais que qualquer curso de especialização. Informações precisas e práticas. Preciosas. Dúvidas prováveis que no lado brasileiro da Fazenda não houvesse pedras para produção e exportação, iam se perdendo. Estavamos lá a trabalho, em busca dessa informação.

Passamos a “matear” (como se referem os gaúchos, ao ritual de tomar chimarrão) todos nós, como manda a regra: a cuia com a bomba cheia de mate é preenchida com a água muito quente que é guardada na garrafa térmica sempre ao lado do bom gaúcho. É passada para quem é a vez, e esta pessoa vai bebendo tranqüilamente até que ouça o som do ar passando pela bomba. Então a cuia é devolvida para quem está com a garrafa térmica e o ritual continua.

A manhã quase ia embora, quando abarrotados de boas informações e com repertório cheia de boas histórias, curiosos por visitar as minas, o Leal decidiu que era hora de irmos até lá, para depois voltarmos à cidade para almoçar.

- Que! – respondeu Mário – o almoço está pronto; depois vamos lá!

Além da hospitalidade irrecusável, prelibávamos as delícias que deveriam ser aqueles pratos dos quais conhecíamos os aromas.

Numa sala de refeições cercada de natureza havia uma pequena mesa redonda, arrumada com nossos quatro pratos e talheres. Numa outra mesa havia copos, leite, água da fonte e a sobremesa coberta com um pano, que fosse o que fosse, imaginei ser aquela travessa de ágate retangular, envelhecida pelo uso, com um creme amarelo e canela que eu havia visto no guarda louça da cozinha.

Sobre um aparador, ao lado da churrasqueira, nos aguardavam arroz carreteiro, macarrão com molho vermelho e uma carne (que por sorte só soube mais tarde) de ovelha em um molho estupendo. Foi impossível a qualquer um de nós comer pouco. Deliciávamo-nos em completo isolamento, enquanto falávamos sem parar da comida, das experiências e das conversas. Satisfeitíssimos, vimos todos da estância retornarem para mais conversas edificantes e para o Nelson providenciar que provássemos a sobremesa: um cremoso arroz doce, que por mais que eu busque palavras não serei justa o suficiente ao descrevê-lo.

...

Partimos para as minas. Em campo aberto, vez por outra encontrávamos porteiras que tinham que ser abertas. Como uma atenta desenhista industrial, estava fascinada com o detalhamento técnico usado na construção destas, inclusive pelo fato delas abrirem por um lado e ao passarmos poder fechá-las pelo outro.

Ao longe avistávamos o Uruguai, ainda dentro da propriedade e imaginávamos ser a divisa, uma “cerca branca”.

Fomos de carro até onde as fileiras de frondosas árvores começavam. Quase que a céu aberto víamos as "capelas" de ametistas por todos os lados. Podíamos descer, pisando nelas e vendo as que ainda estavam para ser retiradas numa extração rudimentar e sem planejamento. Muitas “alamedas” se intercortavam, convergindo para um afloramento de água do subsolo.

Do outro lado as ágatas, em suas infinitas formas e tipos.

E pensar que estávamos lá para confirmar o que já sabíamos e para solidificar nosso trabalho, trazendo inclusive o dono das terras para melhor a extração e ainda otimizar o aproveitamento das sobras.

Maravilhados, voltamos à sede, sempre acompanhados pelo Nelson.

Finalizamos nossa visita e nossa conversa em pé, embaixo de uma parreira degustando bago a bago aquelas frutas maravilhosas.

....

A sensação era das melhores. Além de todos nos sentirmos recompensados, felizes e bem alimentados, a volta parecia ser muito tranqüila. Rodamos alguns quilômetros admirando a natureza e agradecendo o céu claro, e sem muito calor. Falávamos que por sorte a chuva estava um pouco distante, o que nos daria tempo de voltar a atravessar o riacho sem que ele enchesse demais.

Muito relaxada, enquanto o Leal dirigia, acomodei-me um pouco de lado no banco do passageiro. Com a bolsa no colo procurei meu celular para ver se havia algum sinal. Desliguei-me da conversa e degustava aquele momento.

O clima foi quebrado por um ensurdecedor estampido seco, que desestruturou e congelou a cena. Numa fração de segundo, vi o Leal ao meu lado em pânico envolto em uma “fumaça” ao mesmo tempo em que uma dor estúpida me atingia a cabeça e o olho! No reflexo de tocar o local da dor percebi o vidro a minha frente estilhaçado e que eu sangrava no local da dor. Tenho consciência que o tempo da percepção e das ações foi só de um segundo: imaginei que tivesse sido atingida por um tiro, enquanto todos gritavam pelo extintor de incêndio e eu me vi arrancada de dentro do carro.

Sem entender nada, e sem escutar do ouvido direito, pedi a água congelada que havíamos trazido da fazenda. Lavava o local atingido loucamente, mas a dor não passava. Aos poucos fui entendendo o que aconteceu: batemos em uma pedra, o vidro deslocou-se e partiu-se. A fumaça que vimos era o gás saído do air bag e o próprio que era verde claro, que ao abrir-se rapidamente pareceu-me mais fumaça. O que continuava incompreensível era o fato de eu ter me machucado, quando o Leal e eu tínhamos certeza de eu não ter batido a cabeça.

Levamos um tempo para nos organizarmos e pensarmos em voltar aos nossos postos no carro e seguir viagem.

Assim que nos acomodamos no carro novamente o Leal me disse:

- 17:20 Você costuma sentir sinais? Meu irmão.

- Pode ser – confirmei.

...

Assim que o sinal dos celulares retornou na estrada soubemos: naquela hora, em Fortaleza, o irmão dele que não estava bem, tinha feito sua passagem.

...

Dois dias depois concluímos lendo o Manual do carro: o air bag ao abri-se projetou meu braço e o celular com muita força contra minha cabeça. Por isso o corte e o afundamento da pele de formato redondo, o estiramento dos músculos do braço e a bursite no ombro, o que me faz agora com o braço e o ombro imobilizados estar digitando este texto só com a mão esquerda.

(Escrito em Janeiro de 2007)

4 comentários:

Karina Achôa disse...

Recebi e compartilho com vocês:

Que delicia,Karina, esses seus escritos (ponto de exclamacao).
Como voce escreve bem,querida. Estou querendo ouvir isso tudo a vivo e a cores. Sinto falta das sua risadas e nos textos neca de pitibiribas delas. Bom vamos ver como aconteceram as coisas na India(India mesmo-ponto e interrogacao). Em todo caso, vamos nos encontrar.E contar nossas aventuras. As minhas sao tupiniquins mesmo.Mas vou providenciar uma boa maquiagem para voce.Um beijao.
Elisa(Dale)

Karina Achôa disse...

Recebi e compartilho:

Ficou muito bom, vc estava escondendo este outro talento NE?......

Eduardo Malta

Karina Achôa disse...

Recebi e compartilho:

Gostei!
Logo vou entrar neste campo dos blogs
Boa viagem e aproveite para ver tudo que puder para me contar depois.
Beijos!


Isabel Cristina Nascimento
Memória Sabesp

Karina Achôa disse...

Recebi e compartilho:

Bom dia Karina,

Muito legal o seu blog, nossa que legal essa viajem para a India, depois me conta como vc consegue essas proesas....
Estou por Bauru

Bjs,
Dir
Dilson Andries

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